Mais uma noite no Santuário das Palavras
- Ketty Williams

- 17 de out.
- 2 min de leitura

Mais uma noite cai sobre o Santuário. A chuva tamborila suavemente no telhado, e o ar frio traz o perfume de terra molhada. Do lado de dentro, o calor ameno das luzes em tom dourado desenha sombras delicadas nas prateleiras, como se as palavras projetassem suas próprias almas nas paredes.
Caminho devagar entre os corredores. Os livros me observam, imóveis, mas vivos, cada um guardando o universo inteiro de alguém que um dia ousou escrever. Passo a mão sobre as lombadas, sentindo a poeira fina da memória. Tudo está em ordem.
O sininho na porta tilinta, esse som simples, mas reconfortante, que anuncia presença. As pessoas começam a chegar, uma a uma, escapando da chuva. Penduram seus guarda-chuvas e, com passos lentos, cruzam o limiar entre o mundo lá fora e o mundo aqui dentro. Aqui, o tempo tem outro ritmo. Aqui, ninguém precisa correr.
Uma moça senta-se no mesmo canto de sempre. Já a conheço de vista. Fica por horas mergulhada em romances, como quem busca nas palavras um pedaço de algo que o tempo levou. Às vezes, penso que ela sente falta de um amor antigo, o modo como segura o livro, delicadamente, denuncia saudade.
No Santuário, os livros são sagrados. Não podem ser levados, devem permanecer aqui, no coração do espaço, como guardiões de histórias. Mas todos podem ficar o quanto quiserem. Há cadeiras, pufes, zabutons espalhados, e um silêncio confortável, quase maternal. Aqui, o mundo inteiro cabe dentro de uma página.
Logo será hora de tocar o sino. A leitura de hoje é de uma carta escrita por alguém que se despediu da mãe há muito tempo. Pego o pequeno envelope, já amarelado pelas lágrimas, e me preparo. O som do sino ecoa, suave e profundo, convidando todos ao recolhimento. Enquanto leio, as palavras se tornam asas. Elas tocam, ferem, curam. E quando o último ponto final é dito, o ar parece mais leve, como se a dor tivesse encontrado repouso.
A carta será plantada amanhã, junto a uma pequena semente. Assim como todas as outras. É o ritual do Santuário: fazer com que o que foi dito floresça, em algum lugar do mundo.
Já é noite alta. As pessoas se despedem aos poucos, mas a sensação é de que ninguém realmente vai embora. Ficam as vozes, o cheiro de papel, o murmúrio da chuva. Fecho o livro que estava em minhas mãos e respiro fundo. Há paz aqui. E beleza também, uma beleza antiga, que não depende de nada, apenas existe.
Às vezes, ao olhar ao redor, penso que este lugar poderia estar em qualquer cidade, em qualquer tempo. Talvez até em Florença. E se Maquiavel entrasse agora, certamente tiraria o chapéu, sentaria em um canto, e se deixaria ficar, apenas ouvindo o som sereno do silêncio.
(Prosa poética com elementos de realismo mágico e introspecção filosófica.)
Ketty Williams




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